Hoje quero me dirigir a cada um de
vocês para conversarmos um pouco sobre o atual momento que estamos vivendo
fazendo uma conexão com o texto-base da Campanha da Fraternidade.
Em tempos de lives que as tecnologias
nos proporcionam a leitura carece de leitores o que pode empobrecer este rico
ornamento das nossas vidas. Em tempos de fake news carecemos de profundidade e
de pesquisa naquilo que compartilhamos. Em tempo de quarentena somos chamados a
olhar para nós, mas, ao mesmo tempo, olhar para o outro fazendo o exercício da
alteridade “com algo que está fora de nós e que define o horizonte do nosso
fazer, do nosso conhecer e do nosso reconhecer”[1].
O texto-base da Campanha da
Fraternidade deste ano, que traz como tema: Fraternidade e vida: dom e
compromisso; e o lema: “Viu, sentiu compaixão e cuidou dele” (Lc 10,33-34) é um
texto profético principalmente nos números que introduzem cada umas das partes
do mesmo. Para melhor entendermos esse profetismo vamos analisar cada um deles.
A primeira parte traz uma reflexão
sobre o tema VIU.
Diante do convite para vivermos
uma profunda conversão, temos duas maneiras de olhar que são apresentadas por
Jesus na parábola do bom samaritano: um olhar que vê e passa em frente, vivido
pelo sacerdote e pelo levita; e um olhar que vê e permanece, se envolve, se
compromete, vivido pelo samaritano. Para uma verdadeira mudança de vida,
precisamos aprender a configurar nosso olhar com o de Jesus, com o olhar do Bom
Samaritano. Nesse sentido, é interessante observar também que as duas vidas
marcadas pelo egoísmo correm o risco da morte eterna, consequência do pecado[2].
Eu falei que o texto-base é profético
e digo mais: a Igreja no Brasil é profética também por tratar desse tema tão
pertinente neste tempo que estamos vivendo. Vejam bem: quando o texto-base foi
escrito não se pensava em Coronavírus e em Covid-19 e muito menos em
quarentena. No entanto o parágrafo acima aponta para três realidade que estamos
vivendo.
A primeira, sobre as duas maneiras
que temos para olhar essa pandemia que nos cerca. Ou olhamos de forma
insignificante achando que isso não é sério e não levará a nada e seguimos a
vida normal, ou olhamos com o olhar de misericórdia e ajuda nos cuidando,
cuidando dos outros e rezando por aqueles que permanecem, se envolvem e se
comprometem para fazer todo o possível a fim de que vidas sejam poupadas ou
cuidadas com dignidade até fim da existência terrena.
A segunda, é uma mudança de vida,
isto é, a pandemia mudou o curso da vida do mundo sem nenhum precedente. Por
isso a necessidade de olhar o mundo com os olhos de bom samaritano: ter
compaixão. Toda essa situação provocou uma mudança no hábito das pessoas. Os
idosos, muitas vezes vistos como peso para as famílias e sociedade, são vistos
de outra maneira e são ajudados pelos mais jovens; a música toma conta das
sacadas, janelas; a distância de dentro das casas de antes se tornou presença próxima.
Tantas outras situações que eu poderia elencar aqui que provocaram a
transformação de hábitos e costumes na sociedade. Porém, estas já são suficiente
para percebermos as mudanças ocorridas.
A terceira parte chama a atenção para
o outro olhar, o olhar egoísta dos dois que passaram pelo lado do homem caído e
seguiram adiante. Assim como eles dois muitos são os que defendem o egoísmo do
mercado passando ao lado e não se importando com os caídos da pandemia e com os
bons samaritanos que cuidam deles, além de tantas outras realidades que provocam
a queda. Muitos desses são os responsáveis políticos que tem a obrigação de
cuidar do seu povo. A morte eterna representa o arrependimento que poderá vir
tarde demais.
Se, por um lado, o olhar da
indiferença gera tanto mal, da compaixão pode fecundar o bem no coração humano,
e conferir o verdadeiro sentido à vida. Na parábola do Bom Samaritano, Jesus
nos ensinou o olhar daquele que se compromete com o outro. O olhar da compaixão
gera um “permanecer com”, uma presença que salvaguarda, cuida e transforma a
vida de quem mais precisa[3].
Neste parágrafo está presente um
fator importante neste tempo de quarentena: o comprometer-se com o outro e o
permanecer com outro. Estes dois conceitos servem tanto para o cuidado em casa
como para os trabalhos na saúde no cuidado dos pacientes e os cuidados sociais.
Sentir compaixão não é sentir pena, mas estar ao lado, estar junto, compartilhar
momentos, vencer dificuldades, buscar saídas e, sobretudo, viver.
A terceira parte faz uma reflexão sobre
o tema CUIDOU DELE.
Percebendo o ser humano integrado
a toda vida pulsante do planeta, assim indaga o salmista: “Quando vejo os teus
céus, obra dos teus dedos, a lua e as estrelas, as coisa que criaste, que é o
ser humano, para dele te lembrares, o filho do homem, para que o visitastes?”
(Sl8,4s). O ser humano, que recebe o carinho divino e que é chamado a cultivar
a criação, é também convocado a cuidar com divino carinho da vida em todas as
suas formas e expressões[4].
Cuidar do outro não é apenas agora. O
agora é necessário ser cuidado para o depois encontrar espaço para ser desenvolvido
e cuidado, tanto na vida humana como na vida da natureza. Se eu me comprometo em
cuidar do outro – humano e natureza – eu preciso ter o cuidado com o presente e
com o futuro. Precisamos fazer valer o ensinamento do filósofo Hans Jonas que
se pode dizer, um ensinamento profético. Ele chama a atenção para uma ética da
responsabilidade sob o imperativo ético coletivo: “Aja de modo que os efeitos
da tua ação sejam compatíveis com a permanência de uma autêntica vida humana
sobre a Terra”[5]. Quer
dizer: a responsabilidade da vida é de cada um de nós.
Permanecer com o outro também é uma
forma de cuidado. E quando se fala em permanecer com o outro deve-se levar em
conta o bem-estar social. E foi exatamente esta a visão do bom samaritano
quando tomou a decisão de cuidar do homem caído a beira do caminho. É por isso
que “na realidade cotidiana, vida humana e bem-estar ou mal-estar social
possuem um só lugar em que existem: a pessoa humana em sua concretude”[6].
Mais uma vez chegamos a conclusão de que nos cuidarmos mutuamente neste tempo
de quarentena é a melhor solução.
Já concluída a Quaresma e adentrando
no Tempo Pascal sentimos ainda a necessidade de continuarmos em quarentena para
nos precavermos e continuarmos o cuidado uns para com os outros. Mais do nunca
é tempo de olharmos para o Ressuscitado como a luz que inunda os corações
humanos, no sinal de pertença a uma comunidade cristã. É sentir que, mesmo com
os templos vazios, Ele continua presente no seio da comunidade doméstica aquela
que forma a comunidade eclesial. É também tempo de repensar as nossas atitudes.
Tempo de perceber que “o perigo, portanto, não está necessariamente na ausência
de valores (interpretada, por exemplo, como uma neutralidade moral da natureza
ou do homem), mas no fato de que tudo tenha valor, ou seja, que tudo seja
admitido”[7].
Diante disso resta-nos pensar: qual
será nossa verdadeira contribuição para a sociedade em que estamos inseridos? Qual
será nossa verdadeira missão em nossas comunidades cristãs? Estamos a serviço
da vida ou da morte? Seguir o exemplo do bom samaritano e ser testemunho do
Ressuscitado para ver a vida como dom e compromisso e cuidar dela é dar
testemunho de coerência vivencial social e da fé. Portanto, não dá para ser
cristão sem defender a vida e rechaçar tudo aquilo que a ameaça.
Em tempos de quarentena e isolamento
social vamos nos propôr a levar Amor que embebe os corações, provoca reflexão e
leva a transformação.
REFERÊNCIAS
CNBB – Conferência Nacional dos Bispos do Brasil. Campanha da
Fraternidade 2020: Texto-Base. Brasília: Edições CNBB, 2019.
FERRAGUTO, Federico. As lebres e os canibais: anotações sobre o outro
na fronteira das religiões. In: OLIVEIRA, Jelson; FALABRETTI, Ericson – Org. O
Futuro das Humanidades: ciências humanas: desafios e perspectivas. Caxias do
Sul, RS: Educs, 2019.
JONAS, Hans. O Princípio Responsabilidade: Ensaio de uma ética
para a Civilização tecnológica. Trad. Marijane Lisboa, Luiz Barros Montez. Rio
de Janeiro: Contraponto: PUC-Rio, 2006.
LEERS, Bernardino. Em plena liberdade. Belo Horizonte: O Lutador,
2010.
OLIVEIRA, Jelson. Negação e Poder: do desafio do niilismo ao
perigo da tecnologia. Caxias do Sul, RS: Educs, 2018.
[1] FERRAGUTO,
2019, p. 31.
[2]
TEXTO-BASE, n 26.
[3] TEXTO-BASE,
n 82.
[4]
TEXTO-BASE, n 160.
[5]
JONAS, 2006, p. 46.
[6]
LEERS, 2010, p. 217.
[7]
OLIVERIA, 2018, P.69.
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