O PROFETISMO PRESENTE NO TEXTO-BASE DA CAMPANHA DA FRATERNIDADE 2020


Hoje quero me dirigir a cada um de vocês para conversarmos um pouco sobre o atual momento que estamos vivendo fazendo uma conexão com o texto-base da Campanha da Fraternidade.
Em tempos de lives que as tecnologias nos proporcionam a leitura carece de leitores o que pode empobrecer este rico ornamento das nossas vidas. Em tempos de fake news carecemos de profundidade e de pesquisa naquilo que compartilhamos. Em tempo de quarentena somos chamados a olhar para nós, mas, ao mesmo tempo, olhar para o outro fazendo o exercício da alteridade “com algo que está fora de nós e que define o horizonte do nosso fazer, do nosso conhecer e do nosso reconhecer”[1].
O texto-base da Campanha da Fraternidade deste ano, que traz como tema: Fraternidade e vida: dom e compromisso; e o lema: “Viu, sentiu compaixão e cuidou dele” (Lc 10,33-34) é um texto profético principalmente nos números que introduzem cada umas das partes do mesmo. Para melhor entendermos esse profetismo vamos analisar cada um deles.
A primeira parte traz uma reflexão sobre o tema VIU.

Diante do convite para vivermos uma profunda conversão, temos duas maneiras de olhar que são apresentadas por Jesus na parábola do bom samaritano: um olhar que vê e passa em frente, vivido pelo sacerdote e pelo levita; e um olhar que vê e permanece, se envolve, se compromete, vivido pelo samaritano. Para uma verdadeira mudança de vida, precisamos aprender a configurar nosso olhar com o de Jesus, com o olhar do Bom Samaritano. Nesse sentido, é interessante observar também que as duas vidas marcadas pelo egoísmo correm o risco da morte eterna, consequência do pecado[2].

Eu falei que o texto-base é profético e digo mais: a Igreja no Brasil é profética também por tratar desse tema tão pertinente neste tempo que estamos vivendo. Vejam bem: quando o texto-base foi escrito não se pensava em Coronavírus e em Covid-19 e muito menos em quarentena. No entanto o parágrafo acima aponta para três realidade que estamos vivendo.
A primeira, sobre as duas maneiras que temos para olhar essa pandemia que nos cerca. Ou olhamos de forma insignificante achando que isso não é sério e não levará a nada e seguimos a vida normal, ou olhamos com o olhar de misericórdia e ajuda nos cuidando, cuidando dos outros e rezando por aqueles que permanecem, se envolvem e se comprometem para fazer todo o possível a fim de que vidas sejam poupadas ou cuidadas com dignidade até fim da existência terrena.
A segunda, é uma mudança de vida, isto é, a pandemia mudou o curso da vida do mundo sem nenhum precedente. Por isso a necessidade de olhar o mundo com os olhos de bom samaritano: ter compaixão. Toda essa situação provocou uma mudança no hábito das pessoas. Os idosos, muitas vezes vistos como peso para as famílias e sociedade, são vistos de outra maneira e são ajudados pelos mais jovens; a música toma conta das sacadas, janelas; a distância de dentro das casas de antes se tornou presença próxima. Tantas outras situações que eu poderia elencar aqui que provocaram a transformação de hábitos e costumes na sociedade. Porém, estas já são suficiente para percebermos as mudanças ocorridas.  

A terceira parte chama a atenção para o outro olhar, o olhar egoísta dos dois que passaram pelo lado do homem caído e seguiram adiante. Assim como eles dois muitos são os que defendem o egoísmo do mercado passando ao lado e não se importando com os caídos da pandemia e com os bons samaritanos que cuidam deles, além de tantas outras realidades que provocam a queda. Muitos desses são os responsáveis políticos que tem a obrigação de cuidar do seu povo. A morte eterna representa o arrependimento que poderá vir tarde demais. 

Se, por um lado, o olhar da indiferença gera tanto mal, da compaixão pode fecundar o bem no coração humano, e conferir o verdadeiro sentido à vida. Na parábola do Bom Samaritano, Jesus nos ensinou o olhar daquele que se compromete com o outro. O olhar da compaixão gera um “permanecer com”, uma presença que salvaguarda, cuida e transforma a vida de quem mais precisa[3].

Neste parágrafo está presente um fator importante neste tempo de quarentena: o comprometer-se com o outro e o permanecer com outro. Estes dois conceitos servem tanto para o cuidado em casa como para os trabalhos na saúde no cuidado dos pacientes e os cuidados sociais. Sentir compaixão não é sentir pena, mas estar ao lado, estar junto, compartilhar momentos, vencer dificuldades, buscar saídas e, sobretudo, viver.
A terceira parte faz uma reflexão sobre o tema CUIDOU DELE.

Percebendo o ser humano integrado a toda vida pulsante do planeta, assim indaga o salmista: “Quando vejo os teus céus, obra dos teus dedos, a lua e as estrelas, as coisa que criaste, que é o ser humano, para dele te lembrares, o filho do homem, para que o visitastes?” (Sl8,4s). O ser humano, que recebe o carinho divino e que é chamado a cultivar a criação, é também convocado a cuidar com divino carinho da vida em todas as suas formas e expressões[4].

Cuidar do outro não é apenas agora. O agora é necessário ser cuidado para o depois encontrar espaço para ser desenvolvido e cuidado, tanto na vida humana como na vida da natureza. Se eu me comprometo em cuidar do outro – humano e natureza – eu preciso ter o cuidado com o presente e com o futuro. Precisamos fazer valer o ensinamento do filósofo Hans Jonas que se pode dizer, um ensinamento profético. Ele chama a atenção para uma ética da responsabilidade sob o imperativo ético coletivo: “Aja de modo que os efeitos da tua ação sejam compatíveis com a permanência de uma autêntica vida humana sobre a Terra”[5]. Quer dizer: a responsabilidade da vida é de cada um de nós.
Permanecer com o outro também é uma forma de cuidado. E quando se fala em permanecer com o outro deve-se levar em conta o bem-estar social. E foi exatamente esta a visão do bom samaritano quando tomou a decisão de cuidar do homem caído a beira do caminho. É por isso que “na realidade cotidiana, vida humana e bem-estar ou mal-estar social possuem um só lugar em que existem: a pessoa humana em sua concretude”[6]. Mais uma vez chegamos a conclusão de que nos cuidarmos mutuamente neste tempo de quarentena é a melhor solução.
Já concluída a Quaresma e adentrando no Tempo Pascal sentimos ainda a necessidade de continuarmos em quarentena para nos precavermos e continuarmos o cuidado uns para com os outros. Mais do nunca é tempo de olharmos para o Ressuscitado como a luz que inunda os corações humanos, no sinal de pertença a uma comunidade cristã. É sentir que, mesmo com os templos vazios, Ele continua presente no seio da comunidade doméstica aquela que forma a comunidade eclesial. É também tempo de repensar as nossas atitudes. Tempo de perceber que “o perigo, portanto, não está necessariamente na ausência de valores (interpretada, por exemplo, como uma neutralidade moral da natureza ou do homem), mas no fato de que tudo tenha valor, ou seja, que tudo seja admitido”[7].
Diante disso resta-nos pensar: qual será nossa verdadeira contribuição para a sociedade em que estamos inseridos? Qual será nossa verdadeira missão em nossas comunidades cristãs? Estamos a serviço da vida ou da morte? Seguir o exemplo do bom samaritano e ser testemunho do Ressuscitado para ver a vida como dom e compromisso e cuidar dela é dar testemunho de coerência vivencial social e da fé. Portanto, não dá para ser cristão sem defender a vida e rechaçar tudo aquilo que a ameaça.
Em tempos de quarentena e isolamento social vamos nos propôr a levar Amor que embebe os corações, provoca reflexão e leva a transformação.  

Prof. Esp. Edemilton dos Santos 

REFERÊNCIAS

CNBB – Conferência Nacional dos Bispos do Brasil. Campanha da Fraternidade 2020: Texto-Base. Brasília: Edições CNBB, 2019.

FERRAGUTO, Federico. As lebres e os canibais: anotações sobre o outro na fronteira das religiões. In: OLIVEIRA, Jelson; FALABRETTI, Ericson – Org. O Futuro das Humanidades: ciências humanas: desafios e perspectivas. Caxias do Sul, RS: Educs, 2019.

JONAS, Hans. O Princípio Responsabilidade: Ensaio de uma ética para a Civilização tecnológica. Trad. Marijane Lisboa, Luiz Barros Montez. Rio de Janeiro: Contraponto: PUC-Rio, 2006.

LEERS, Bernardino. Em plena liberdade. Belo Horizonte: O Lutador, 2010.

OLIVEIRA, Jelson. Negação e Poder: do desafio do niilismo ao perigo da tecnologia. Caxias do Sul, RS: Educs, 2018.
  




[1] FERRAGUTO, 2019, p. 31.
[2] TEXTO-BASE, n 26.
[3] TEXTO-BASE, n 82.
[4] TEXTO-BASE, n 160.
[5] JONAS, 2006, p. 46.
[6] LEERS, 2010, p. 217.
[7] OLIVERIA, 2018, P.69.

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